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O retorno de governos comprometidos com a causa da integração na América Latina volta a colocar o tema no centro do debate político na região. Fala-se, em particular, da possibilidade de relançar a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) depois que, entre 2018 e 2020, sete dos seus doze membros terem denunciado o Tratado Constitutivo da organização entre 2018 e 2020. Em especial, a perspectiva de uma vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais no Brasil de 30 de outubro de 2022 aviva as especulações sobre as possibilidades de retomar a Unasul. Com a notável exceção do governo de Jair Bolsonaro, o Brasil vem procurando há décadas construir um espaço regional sul-americano.
Este estudo analisa (1) o legado da Unasul, seus acertos, erros e vulnerabilidades, (2) a situação jurídica atual da Unasul e o status de seus membros fundadores em relação ao Tratado Constitutivo da Organização, e (3) as reformas que devem ser realizadas para garantir a sustentabilidade a longo prazo deste projeto de integração.
A Unasul surgiu de esforços de vários anos para estabelecer uma entidade de integração sul-americana. Em 2004, foi criada a Comunidade Sul-Americana de Nações, renomeada Unasul em 2007. Na Cúpula de Brasília de maio de 2008, os presidentes sul-americanos assinaram o Tratado Constitutivo da Unasul que entrou em vigor em março de 2011, seis meses após sua nona ratificação parlamentar. Entre 2009 e 2011, os poderes legislativos de cada um dos doze países sul-americanos, de vários sinais ideológicos, ratificaram o Tratado Constitutivo da Unasul.
O propósito essencial da Unasul era dotar o subcontinente sul-americano de maior integração e alcançar a convergência entre seus dois eixos principais: os subsistemas atlântico-Cone Sul e andino-pacífico, historicamente pouco interligados. A Unasul procurava construir uma governança regional própria em todas as áreas da gestão pública, impulsionar a conectividade e a articulação de capacidades nacionais para o desenvolvimento da região e consolidar um bloco regional mais coeso capaz de se projetar com eficácia a nível internacional.
Os primeiros anos de vida da Unasul foram marcados pelos importantes posicionamentos coletivos de uma diplomacia de recorte presidencial, sobretudo em defesa da democracia e do Estado de direito. A Unasul também desempenhou um papel importante para diminuir as tensões entre vários de seus membros.
Progressivamente, a Unasul começou a implantar uma atividade setorial mais importante. Foram estabelecidos doze conselhos ministeriais para facilitar a cooperação e a articulação de políticas na região. Vários conselhos, por exemplo, o Conselho de Defesa Sul-Americano e o Conselho de Saúde Sul-Americano, entre outros, começaram a desenvolver uma agenda importante com a concretização de planos e projetos de longo prazo.
Mas a Unasul não conseguiu transcender essa fase incipiente de consolidação. Com ainda escassos anos de vida e insuficiente construção de institucionalidade, recebeu golpes que se saldaram no abandono e paralisia da organização.
A falta de consenso entre os Estados-Membros para a nomeação de um novo secretário ou secretária-geral entre 2017 e 2019 foi o elemento catalisador para que, no contexto de uma mudança radical de sinal político na região, vários governos optaram por sair da organização. Em 2018, cinco governos suspenderam a sua participação apesar de não existir esta figura no Tratado. Entre 2018 e 2020, sete dos doze países membros notificaram a denúncia do Tratado Constitutivo e deixaram a organização.
Se hoje a Unasul está paralisada, deve-se ressaltar que seu Tratado Constitutivo permanece em vigor para todos os membros que não o denunciaram. Enquanto pelo menos dois Estados continuarem a pertencer a ela, a organização continuará a existir juridicamente a nível internacional. Se houver vontade política, não há impedimento legal para que a Unasul possa ser relançada por seus Estados-Membros.
É importante ressaltar que, além disso, vários membros denunciaram o Tratado Constitutivo da Unasul de forma irregular. O Brasil e a Argentina, em particular, não denunciaram de forma apegada à lei. Ambos os países ignoraram o tratamento legislativo especificado por suas respectivas constituições.
A nossa análise da situação jurídica atual do Tratado Constitutivo de Unasul nos doze membros fundadores revela o seguinte:
Na realidade, os sete governos que denunciaram o Tratado Constitutivo da Unasul (Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Paraguai e Uruguai) fizeram isso sem levar em conta os mecanismos para os tratados multilaterais que exigem a busca de acordos. A Bolívia se opôs às denúncias unilaterais dos países e convidou para o diálogo. Na época, o Uruguai demonstrou uma vontade reparadora para resolver os problemas surgidos dentro da organização. As sete denúncias não cumpriram as disposições do Tratado Constitutivo da Unasul no que diz respeito às disposições para a busca de diálogo político (artigo 14 do Tratado), para a resolução de controvérsias (artigo 21) ou mesmo, para o procedimento de Emendas (artigo 25).
Vale lembrar que o direito internacional público, incluindo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, protege a estabilidade dos Tratados e estabelece que a interpretação das regras deve tender à correção das diferenças no sentido de proteger a plena vigência dos mesmos.
As numerosas irregularidades deste caso abrem a possibilidade de um mecanismo de resolução de controvérsias que poderia acomodar uma saída coletiva para corrigir o processo irregular de enfraquecimento da Unasul.
Uma nova Unasul exigirá, sem dúvida, mudanças significativas nos seus regulamentos e funcionamento. É necessária uma Unasul mais sustentável, eficaz e resiliente, capaz de lidar com os balanços ideológicos que caracterizaram a história política do continente e de garantir a continuidade da integração a longo prazo.
Para isso, várias falhas de projetos que dificultaram o trabalho da organização nascente e precipitaram sua queda devem ser corrigidas. Para este fim, anexamos a este estudo uma proposta conservadora de reforma ao Tratado Constitutivo da Unasul.
É indubitável que a Unasul foi marcada pela chamada diplomacia presidencial, que colheu resultados importantes para a estabilidade da região. Em termos organizacionais, este presidencialismo resultou, especialmente no início da Unasul, no que foi chamado de “multilateralismo pro tempore”: uma prática que faz com que os Estados se revezam à frente de uma organização, geralmente por um período de um ano, durante o qual o serviço exterior do país que exerce a “presidência pro tempore” assume o papel burocrático da organização.
O multilateralismo pro tempore é eficaz em seus primórdios: reduz custos em uma fase em que a organização incipiente ainda não tem resultados tangíveis para mostrar. Mas transferir todas as competências todos os anos para uma nova burocracia significa perder grande parte da memória institucional. A longo prazo, é fundamental ter uma equipe técnica que se dedique exclusivamente à consolidação da organização, que adquira cada vez mais perícia e que seja responsabilidade de todos os países membros.
O presidencialismo, na ausência de órgãos intergovernamentais fortes, também significou que a Unasul seria facilmente refém das mudanças pendulares das situações políticas nacionais. A onda de governos progressistas seguiu-se de uma onda de governos com baixo compromisso com a integração regional. Estes últimos não enfrentaram obstáculos institucionais importantes no momento de tomar decisões que enfraqueceram a organização.
Sugerimos a seguir, portanto, mudanças regulamentares que poderiam ajudar a consolidar a organização e o seu secretariado geral.
O artigo 12 do Tratado Constitutivo da Unasul estabelece que “toda a regulamentação da UNASUL será adotada por consenso”. A regra do consenso, virtuosa na sua intenção de respeitar a vontade de todos os Estados, selou uma importante fraqueza fundacional: concedeu um poder de veto de fato a cada membro em cada instância de decisão, impedindo o avanço de propostas claramente majoritárias e a nomeação de autoridades, o que finalmente aprofundou a sua acefalia e paralisação.
A regra do consenso deve, portanto, ser repensada ou, pelo menos, a organização deve ser encaminhada para um modelo híbrido de tomada de decisão, para que a exigência do consenso não se aplique a todo o âmbito de decisão. Algumas decisões, por exemplo, no caso da adesão de novos membros, podem exigir unanimidade, mas outras poderiam ser regulamentadas de outra forma, com maiorias, mesmo maiorias qualificadas, ou seja, métodos semelhantes aos empregados por outras organizações internacionais.
A Unasul deve ser relançada com uma forte ênfase na necessidade de retomar a agenda de convergência entre a Comunidade Andina (CAN), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e outros organismos regionais. Os Estados-Membros não podem voltar a mudar de ideia em torno da sua adesão à Unasul e, para que a organização não sofra de futuros boicotes ou tentativas de destruição, são necessários incentivos concretos. Uma maior ênfase na convergência, inclusive em matéria comercial, poderia ser um incentivo para alguns setores empresariais que não acompanharam seu processo de consolidação com particular entusiasmo.
Adicionar uma agenda comercial à Unasul poderia ajudar a consolidar um pacto político de longo prazo para que a aposta no espaço sul-americano, nas suas instituições e na sua autonomia não seja constantemente posta em causa ou traída.
A criação da Comunidade Sul-Americana de Nações em 2004, que mudou seu nome para Unasul em 2007, buscava justamente facilitar – e ir além – a convergência entre a CAN e o Mercosul. Este desejo de integração sul-americana que antecede a onda de governos progressistas, mas que foi aprofundada como nunca antes por estes últimos, pode e deve se tornar política de Estado que transcenda os solavancos políticos da região.
Outro incentivo importante para os Estados se comprometerem com a integração sul-americana poderia ser o estabelecimento de uma moeda comum e de um sistema de pagamentos comum para o comércio intrarregional. Essa seria uma moeda adicional às moedas nacionais, comparável ao que foi a Unidade Monetária Europeia mais conhecida como o ECU (pela sigla em inglês) europeu antes do advento do euro. O emissor seria, portanto, o Banco Central do Sul.
Uma moeda regional seria, sem dúvida, uma grande ferramenta para que a América do Sul pudesse se relacionar com o resto do mundo como um bloco. A América do Sul precisa escalar na hierarquia monetária internacional que atualmente lidera o dólar americano, seguido pelas moedas que constam na cesta dos Direitos Especiais de Giro (euro, libra, yuan, iene) e pelas moedas que contam com linhas swap com a Reserva Federal dos Estados Unidos. Este estudo inclui considerações sobre como esta moeda poderia ser estabelecida.
Fala-se com muita frequência de possíveis “alternativas” à Unasul. É constantemente feita referência à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). A CELAC é, sem dúvida, uma aposta de vital importância; talvez até o horizonte final de qualquer processo de convergência regional em matéria de integração. A grande riqueza da CELAC é a sua adesão diversificada que permite um diálogo entre atores latino-americanos e caribenhos fora do controle zeloso fornecido por uma OEA com sede em Washington. É também uma expressão fundamental do Sul global no hemisfério ocidental, chamada a elevar a voz e as demandas dos povos latino-americanos e caribenhos a nível multilateral e global em matéria de desenvolvimento, paz, justiça global e de luta contra a pobreza, a desigualdade, as mudanças climáticas, entre outros.
No entanto, a CELAC carece de um tratado constitutivo e de institucionalidade própria, como aquela que foi criada pelo Tratado Constitutivo da Unasul. Além disso, a amplitude conferida pelos trinta e três membros da CELAC impede acordos mais concretos e vinculativos em matéria de governança regional com regulamentos comuns, confluência e homogeneização de políticas e um verdadeiro programa de desenvolvimento regional.
A Unasul, ao contrário da CELAC, pode avançar mais rapidamente para a integração física e normativa, ou seja, para uma verdadeira governança regional, com menos Estados-Membros, maiores níveis de autonomia e de homogeneidade estrutural produtiva mesmo, apesar das grandes assimetrias que perduram na América do Sul e que a integração sul-americana deve enfrentar através de políticas comuns.
Na verdade, se o caráter sul-americano da Unasul é inicialmente importante, a organização não precisa estabelecer limites geográficos muito rigorosos com antecedência. No Tratado de Roma de 1957, os europeus deixaram um véu estratégico de ambiguidade sobre o que significava o espaço europeu.
A CELAC nasceu em 2010 em grande parte pelo impulso dado pela Unasul e pelo México para transformar o Grupo do Rio em uma organização internacional. Unasul e CELAC são simbióticas, não mutuamente exclusivas. Uma Unasul forte será sempre o maior ativo da CELAC: uma base de apoio comprometida com a relevância, liderança e sucesso da CELAC.
A segunda alternativa que é frequentemente mencionada é o Mercosul expandido. O Mercosul expandiu-se desde a sua fundação e diversificou-se a partir dos protocolos de Ouro Preto e Ushuaia. Mas o Tratado de Assunção de 1991, documento fundador do Mercosul, não deixa de ser um acordo comercial notificado à Organização Mundial do Comércio sob a cláusula de habilitação, enquanto o Tratado Constitutivo da Unasul está registrado na ONU e envolve uma construção regional multidimensional em matéria de defesa, segurança, democracia, direitos humanos, desenvolvimento, infraestrutura, energia, meio ambiente, conectividade, mobilidade, saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura, gestão de catástrofes, entre outros.
Existem, além disso, importantes obstáculos para que o Mercosul ampliado possa incorporar os países do eixo andino-pacífico, sobretudo, dado seu acervo de regulamentos tarifários. Quão possível é que a Colômbia, o Equador, o Peru ou o Chile se juntem ao Mercosul como Estados Partes no médio prazo? E certamente não será a CAN que incorporará no seu seio os países do eixo atlântico como Estados-Membros.
A Unasul pode desempenhar um papel central de convergência para que se privilegie a projeção, a nível sul-americano, das melhores práticas e da melhor bagagem institucional, e não se procure apenas a difícil incorporação do eixo Pacífico no eixo Atlântico ou vice-versa.
Diante de um sistema internacional marcado novamente pelas rivalidades entre as grandes potências, especialmente entre os Estados Unidos e a China e, diante dos grandes desafios do século XXI, a aposta do Sul global deve ser a consolidação de blocos regionais que tendam para uma maior autonomia estratégica e um não alinhamento renovado e atualizado. Apenas uma maior articulação das vontades nacionais pode configurar um bloco sul-americano capaz de ter algum peso a nível multilateral e global e conseguir que suas demandas sejam atendidas.
Em termos econômicos, a integração deve acompanhar um processo de transformação produtiva e contribuir para um processo de diversificação da tradicional ultra especialização produtiva que caracteriza uma região dedicada ainda desmedidamente à produção e exportação extra regional de matérias-primas. Esta integração e diversificação produtiva são fundamentais para alcançar uma gradual industrialização da região, maiores níveis de inovação, maiores componentes tecnológicos e cognitivos nas cadeias produtivas e, portanto, uma maior autonomia estratégica e maior geração de riqueza para as economias sul-americanas.
A Unasul goza de um tratado constitutivo que oferece um olhar abrangente e multidimensional sobre as necessidades de articulação da região. O Tratado também responde a uma visão centrada na autonomia e nos direitos, o que constitui um legado fundamental e um instrumento atual de difícil recreação em circunstâncias atuais ou futuras. Nenhum outro organismo regional abre a gama de alternativas e possibilidades oferecidas pelos regulamentos fundacionais da Unasul.
Por todas estas razões, acreditamos que a região deve maximizar a vigência jurídica do Tratado Constitutivo, e que o maior número possível de países da região deve reincorporar-se à Unasul.
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